Escrever sobre Compliance Tributário pressupõe falar antes sobre Tributação e depois averiguar como as estratégias de Compliance podem ser úteis em termos de tributação, direitos e deveres, infrações, crimes e relacionamentos entre o Fisco e o Contribuinte. Esta é a proposta destas breves digressões sobre dois temas os quais tive a oportunidade de vivenciar na prática e estudar na teoria. E ainda o faço.
O sistema tributário brasileiro é peculiar, singular. Veja-se, por exemplo, a Constituição da Itália. Ali encontram-se poucas referências à tributação: legalidade, isonomia fiscal e capacidade contributiva “ed basta” ! “Art. 53. Tutti sono tenuti a concorrere alle spese pubbliche in ragione della loro capacita` contributiva. Il sistema tributario e` informato a criteri di progressivita` [1192 ]. Art. 5
No sistema tributário nacional, de forma diversa, a Constituição Federal, no ápice da pirâmide kelseniana, estabelece dezenas de comandos sobre temas tributários, deixando ao exegeta uma tarefa hercúlea de vislumbrar alguma ordem no caos ou no manicômio jurídico tributário, como diria Alfredo Augusto Becker. Mas vamos lá.
Fala-se em sistema solar, sistema digestivo, sistema econômico, sistema jurídico e em sistema tributário, dentre outros incontáveis exemplos. O que tudo isto tem em comum, para incluídos em uma categoria ? Pois bem, são todos sistemas. E o que são sistemas? O que compõem os sistemas? Elementos e estrutura, como ensina Tercio Sampaio Ferraz.
Você pode ter um amontoado de mesas, cadeiras e lousa num canto de um recinto e você não terá uma sala de aula. Porém, se você organizar todos os elementos segundo um sentido lógico, você terá uma sala de aula. Assim sendo, não basta a simples somatória de elementos. É necessário que haja uma estrutura, uma organização, como ensina Paulo de Barros Carvalho.
O Direito também pode ser visto como um sistema. Alguns dos seus elementos seriam: a Constituição Federal, Emendas Constitucionais, Leis Complementares, Leis Ordinárias Federais, Estaduais e Municipais; Medidas Provisórias; Leis Delegadas; Decretos Legislativos; Resoluções do Senado; Decretos; Instruções Normativas; Portarias; Atos Declaratórios e assim por diante.
Neste contexto também se considera a jurisprudência, as decisões das autoridades competentes, as atividades dos operadores privados, os costumes e os princípios como elementos do sistema, porém sua análise foge ao escopo destas breves destas reflexões.
E qual seria a estrutura deste sistema? Relações de subordinação e relações de coordenação entre os elementos. Nas relações de subordinação há normas superiores e normas inferiores. As normas superiores prevalecem às normas inferiores, que delas derivam e a elas devem obediência , no processo que se inicia com a norma mais geral e abstrata, a norma hipotética fundamental (“as normas jurídicas devem ser obedecidas”), à norma mais individual e concreta, como é um contrato entre duas partes “pacta sunt servanda” ou uma sentença judicial, proferida num processo em que se observe o princípio de adstringência ao pedido. Normas jurídicas que valem somente para aquelas pessoas (individual) e somente para aquele caso (concreto).
Já nas relações de coordenação, várias espécies normativas ocupam o mesmo patamar hierárquico, não prevalecendo uma sobre outra, mas tendo cada qual a sua área de competência e função. Assim, a lei ordinária, o decreto-legislativo, exemplificativamente, tem, cada qual, a sua função e nesta função são soberanas.
E assim se desenha um sistema jurídico: elementos e estrutura.
Da mesma forma o sistema tributário nacional, subsistema dentro do sistema jurídico, exibe seus elementos e sua estrutura, cabendo mencionar aqui, desde logo, na linha das lições primordiais de Geraldo Ataliba, os Princípios da República e da Federação.
Está ali, logo no primeiro artigo da Constituição Federal, que o Brasil é uma República, vale dizer, “res” “publica”, a coisa do povo, o respeito pela vontade popular que se viabiliza através da representatividade, que se instrumentaliza por meio de leis que devem ser feitas pelos representantes em nome dos representados. Pelo menos este é o “dever ser”. Não tratamos aqui de eficácia social, somente de eficácia jurídica. O plano do “dever ser”, conforme a doutrina de Hans Kelsen.
E é uma República Federativa. Não se trata de um estado unitário em que as regiões não tem autonomia, pelo contrário, há dezenas de estados, milhares de municípios e o distrito federal, todos com poder de produzir leis. Isto é autonomia (que obviamente não se confunde com soberania). Há multiplicidade de entes e há equipotência, onde um ente não se sobrepõe aos outros, tendo cada qual sua área de atuação.
Ressalvar estes princípios desde logo é fundamental, pois significa dizer que toda a Federação produz leis, logo, produz leis tributárias. Leis nas quais os entes da Federação tem autonomia, mas não tem soberania, vale dizer, devem obediência à Constituição Federal e aqui temos uma condição de validade da lei tributária: estar de acordo com a Constituição Federal. Estar de acordo com a espécie normativa que lhe é superior, relação de subordinação do sistema jurídico.
A produção de leis tributárias devem obedecer aos Princípios Constitucionais Tributários: Igualdade, Legalidade, Isonomia Fiscal, Estrita Legalidade, Capacidade Contributiva, Irretroatividade, Anterioridade (anual e nonagesimal), Vedação de Confisco, Uniformidade Geográfica, Não discriminação conforme origem e destino, Essencialidade, Não-Cumulatividade e vários outros.
Produzidas e publicadas as leis, de modo válido, de acordo com as competências dos entes da Federação, estando vigentes e sendo aplicáveis e vindo a ocorrer no mundo real fatos, cujos conceitos se adequam à perfeição aos conceitos das normas, surgem obrigações para as pessoas jurídicas e físicas, denominadas de obrigação principal, pagar dinheiro ao Estado, e obrigações acessórias: registrar as operações, produzir documentos e entregar tais informações ao Estado, em prazos legais, para que este possa produzir controle e fiscalização, quanto ao correto cumprimento da obrigação principal.
O descumprimento destas obrigações pode caracterizar-se como infrações à lei, como a inadimplência, que acarreta a incidência de multas e juros ou crimes, em situações mais graves, em que há deliberada intenção de falsificar documentos e usar outros ardis previstos em lei (Lei 8137), e aí temos a existência de crimes de sonegação, penalidades mais graves e até penas restritivas de liberdade.
Neste ponto chegamos à função estratégica do Compliance para as empresas, vale dizer, as técnicas administrativas para fomentar o cumprimento das leis pelas organizações de modo consciente e contínuo, visando sua longevidade e prosperidade e de seus administradores, vale dizer, a sustentabilidade de todos.
A inobservância das normas tributárias, bem como condutas antiéticas no que diz respeito à observância das obrigações tributárias principal e acessórias, podem apresentar grau de gravidade diferenciado e consequentemente caracterização jurídica distinta e consequências diversas.
Há infrações tributárias e há crimes tributários, abordando a questão de modo bastante direto. Sendo infrações tributárias teremos penalidades menos gravosas, sendo crimes tributários teremos sanções mais severas. Em Compliance tributário vamos usar as estratégias de Compliance para prevenir, detectar e até sancionar a ocorrência, no âmbito interno das organizações, das condutas que levam tanto às infrações e aos crimes.
E esta é uma dinâmica importante dentro de Compliance: PREVENIR, DETECTAR E REMEDIAR. A ação de prevenção se desenvolver ao estabelecer o tom da liderança (the tone at the top), ao identificar os riscos na atividade de gestão de riscos, escrevendo códigos de condutas e outras normas internas, mediante comunicação, treinamento, auditorias prévias e sistemas de controle. O que também pode abranger de modo específico as obrigações tributárias.
Detectar se faz por canais de denúncia, investigações e auditorias em que a empresa toma iniciativas para evitar que seus funcionários violem as obrigações tributárias e sua liderança tenha comprometimento com o seu cumprimento. Sancionar significa tomar as medidas que a legislação trabalhista permite ao empregador para punir empregados que descumpram a lei e as normas internas: advertências verbais ou por escrito, demissão com ou sem justa causa e, em alguns casos, pedido de abertura de inquérito policial, a “notitia criminis”.
Todas as estratégias disponíveis em Compliance para dar efetividade ao cumprimento das normas em geral e a princípios éticos podem e devem ser aplicadas à observância da legislação tributária.
Tendo em vista o imenso crescimento do interesse pelo tema de Compliance no Brasil atual, observa-se a iniciativa das administrações fazendárias de fomentar o Compliance Tributário, como o programa Nos Conformes do Estado de São Paulo ou o Programa Pró-Conformidade, da União Federal. No exterior, os Estados Unidos da América do Norte já tratavam do tema quando do lançamento do FATCA – Tax Compliance.
Outros temas bastante atuais também dizem respeito ao Compliance Tributário, como a distinção entre inadimplência e a sonegação fiscal, ou a recente criminalização pelo STJ quanto à inadimplência de ICMS, tema a ser enfrentado pelo STF ou ainda a recente portaria da Secretaria da Receita Federal determinando a exposição pública de contribuintes em situações de investigação de sonegação.
A tema é bastante rico e merece aprofundamento em cada um dos seus itens. Nesta breve abordagem ficam sedimentadas as premissas de que para o Compliance Tributário, o conhecimento de uma complexa e volumosa legislação, de um lado, e o conhecimento das estratégias de Compliance , de outro lado, são fundamentais para se buscar a sustentabilidade das organizações quanto a um de seus maiores desafios: o cumprimento das normas e obrigações sobre os tributos.
Edmo Colnaghi Neves é Doutor em Direito do Estado PUC/SP, Diretor de Compliance e Jurídico em multinacionais (2005/16), Professor de Compliance da ESA/OAB, Coordenador de Compliance Tributário no IBDEE